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A cura pela fala

Por: Roberto Marinho

O provérbio “Quem canta seus males espanta”, ( numa paródia, eu ousaria dizer: “Quem fala seus males espanta “, muitos risos). É uma expressão da sabedoria popular brasileira, transmitida ao longo das gerações. Até onde sei, não há um autor específico associado à esta frase, pois ela faz parte do folclore e da cultura oral. A ideia por trás do provérbio é que cantar, e, depois, falar, como penso, pode ajudar a aliviar as preocupações e os males, promovendo uma sensação de alívio, bem-estar e alegria.

Uma música que aborda a ideia de cura pela fala é “Talking Cure” da banda Therapy?. Esta canção, lançada no álbum Troublegum em 1994, explora a temática da terapia verbal e a liberação emocional através do discurso. A letra destaca a importância de expressar sentimentos e pensamentos para encontrar alívio e compreensão, refletindo o conceito psicanalítico de cura pela fala.

Outra música que pode ser mencionada é “Unwritten” da Natasha Bedingfield. Embora não fale diretamente sobre a psicanálise, a letra enfatiza a importância da expressão e da comunicação como formas de encontrar liberdade e clareza pessoal.
Essas músicas, de maneiras diferentes, capturam a essência de como a expressão verbal pode ser uma ferramenta poderosa para o alívio, bem-estar emocional e psicológico.

Para explicar com mais detalhes e na prática, escolhi o trecho de um filme, “Bebê Rena”. Vamos lá..

Ao assistir à série Bebê Rena, na Netflix, fui surpreendido pela profundidade de uma cena que exemplifica brilhantemente os temas que quero discutir. Richard Gadd interpreta Donny, um comediante que, no auge de sua carreira fracassada, se encontra na final de um concurso de stand-up comedy. No entanto, ao invés de trazer piadas e risos, Donny opta por um desabafo brutalmente honesto.

No palco, ele revisita e expõe publicamente suas feridas mais profundas. Ele fala sobre a confusão que sente em relação à sua sexualidade, os abusos sexuais que sofreu de um mentor, e a perseguição incansável de Martha Scott, uma mulher com sérios problemas psíquicos, interpretada de forma magistral por Jessica Gunning. Martha, obcecada por Donny, passa a segui-lo e a enviar mensagens incessantes pelo WhatsApp, invadindo todos os aspectos de sua vida.

Esse momento de catarse pública é um ponto de virada para Donny. Ao falar abertamente sobre suas dores, ele sente um alívio imediato, uma alegria que beira a cura, mesmo que temporária. Mas a história não para por aí. As complexidades de seus traumas e a obsessão de Martha continuam a rondá-lo, levando-o a confrontar novos desafios.

A série Bebê Rena não é apenas um entretenimento; é um convite à reflexão. Assistir a essa obra é mergulhar nas profundezas da alma humana, nos conflitos internos e nas batalhas silenciosas que cada um de nós enfrenta.

Recomendo que todos assistam para entender, em toda sua plenitude, as nuances e emoções que tento descrever aqui. É uma experiência que toca e transforma, mostrando que, às vezes, a comédia pode ser o palco perfeito para as mais sérias revelações.

De volta, mais risos. Na psicanálise, a ideia de “cura pela fala” tem raízes profundas na crença de que trazer à tona pensamentos, sentimentos e memórias reprimidos pode aliviar o sofrimento psicológico e promover a cura. Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, acreditava que a expressão verbal dos conteúdos inconscientes, muitas vezes por meio da livre associação de ideias durante as sessões terapêuticas, poderia revelar conflitos e traumas reprimidos. Enfrentar e integrar esses aspectos da psique de maneira mais saudável era, para Freud, a chave para a cura.

Jacques Lacan, influenciado por Freud, deu um passo adiante ao destacar a importância da linguagem e da comunicação na psicanálise. Ele via o inconsciente estruturado como uma linguagem, defendendo que a fala não apenas revela os processos internos, mas também os constrói. Assim, na visão de Lacan, a dinâmica terapêutica envolve explorar como a linguagem molda a compreensão do self e das experiências do paciente.

A “cura pela fala” vai além de simplesmente falar sobre problemas. Trata-se de explorar as camadas mais profundas da mente, revelando conteúdos inconscientes que impactam o comportamento e as emoções. Esse processo promove reflexão, compreensão e integração de aspectos muitas vezes desconhecidos ou reprimidos da psique do indivíduo.

Kátia Vanessa Tarantini Silvestri, em seu artigo, aborda o tema da palavra, da cura pela palavra segundo a psicanálise, e a relação com outras áreas do saber, como a filosofia e a linguística. Ela nos leva a refletir sobre questões clássicas da filosofia, como aquelas levantadas no diálogo platônico Ménon: como podemos procurar aquilo que ignoramos? E, se encontrássemos, como saber se o encontrado era o que procurávamos? Provocações como essas remetem à discussão sobre o que, afinal, é a verdade.

Heidegger, filósofo contemporâneo alemão, oferece uma compreensão do termo grego physys, não como natureza, mas como emergir. A verdade, para Heidegger, não reside na adequação entre o enunciado e a coisa, mas na liberdade de entregar-se ao ente. Esse desvelamento, essa revelação do ser, é também uma ocultação.

A arte da escuta, segundo Heráclito, filósofo grego pré-socrático, não é simplesmente ouvir quem diz, mas escutar o logos, o discurso que pode tanto se revelar quanto se esconder na palavra.

A psicanálise, assim, encontra na filosofia um terreno fértil para aprofundar a compreensão do ser humano. Heidegger nos diz que a verdade é conquistada na decisão de nossa missão. A verdade não é estática; ela se abre e se revela na medida em que o ser humano se entrega ao Ser e ao risco de sua própria presença.

Portanto, a “cura pela fala” é um convite ao desvelamento do ser, um processo que vai além da simples lógica aristotélica de não contradição. A verdade deve ser decifrada, e é nessa jornada que se encontra a essência da psicanálise. O enunciado não é apenas o que foi dito, mas o que se revela e se oculta na palavra, no discurso, na linguagem que constrói e transforma a nossa compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.

Há muitas formas e lugares para exercermos a fala curativa. Podemos encontrar essa oportunidade em grupos de ajuda, entre amigos, em grupos de estudo e em qualquer ambiente onde possamos ser realmente quem somos, sem medo das críticas. Até mesmo com um analista ou terapeuta, que, com amor e cuidado, pode nos ouvir atentamente. Enquanto falamos, vamos nos reelaborando e revendo nossas experiências — um exercício delicioso que recomendo fortemente.

Que você tenha uma boa semana e encontre seu espaço de fala.

Roberto Marinho
Publicitário e Psicanalista
Contato: robertomarinho28@gmail.com

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